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O costumeiro e o Inconsciente

 Digestão e tempo numa análise 


           Estava fazendo alongamento e comecei a pensar sobre minha análise e seus processos, como de costume. Costume... sempre costumo pensar na minha análise nessa mesma hora em que estou mexendo meu corpo, mexendo onde dói, se dói minha coluna, se me sinto cansada, se me dói a cabeça, se fico enjoada enquanto rolo minha cabeça até o pé, se estou mais disposta, descansada ou sem dores alguma. Começo a pensar nessa repetição: costumo fazer minha aula de pilates depois da minha análise, onde às vezes pensando e mexendo em algum músculo me vem algumas lágrimas, enquanto mergulham em mim palavras, entonações e vozes que foram ditas durante aquele tempo que se passou a sessão, e durante o tempo de meu pilates que também passa, passo a limpo os ditos desse outro tempo que acabou de se passar. E começo a pensar o quão é importante aquele espaço, em que não falo nada, mas me movo enquanto penso e escuto minha própria análise. Vou atrás e lembro que já fazia isso, durante as 2h que eu levava indo para minha faculdade. E por ser costumeiro, quase sem pensar, pois não era um pensamento de: preciso pensar e captar o que falei, o que não falei, era simplesmente deixar ser caminhada por aquelas palavras e afetos, sem que eu notasse. 

O inconsciente mora também aí, nos detalhes, nos costumes, nas repetições que não percebo, era o movimento dele mesmo de montar e desmontar frases, histórias. O trabalho se dá aí, sem que eu possa perceber, sem que eu saiba conscientemente, mas saiba em outro lugar. E me dou conta da importância desses pequenos hiatos, dessa pequena pausa onde posso digerir, mastigar e tirar algum pedaço que possa ter ficado entre meus dentes. A importância de não sair fazendo alguma outra coisa com meus pensamentos, minha atenção na correria que esse mundo nos exige, e não esvaziando o que se passou naquela hora. Um respiro porque fazer análise nem sempre promove um bem-estar, às vezes ainda que sentindo um alívio enorme de ter falado, aquelas palavras que saíram da minha boca ganham ainda mais vida em meu corpo, esse que mexo e remexo depois de deitada no divã. 

Meu Pé de Cerejas


    A gente correu para o mato onde tinha uma casinha na árvore que eu queria lhe mostrar.
---Vai, pode abrir os olhos... – esperei alguns segundos suficientes para que a vista se acostumasse - gostou?!
    Ninguém podia enxergar a gente ali. Era o nosso lugar. Nosso esconderijo. Estávamos sentados e sem querer uma manga de minha blusa caiu e meu ombro ficou à mostra. Eu rapidamente vesti para que você não visse. Mas você viu, é claro...
---Ei, espere aí... - você se aproximava e com suas mãos delicadamente tirava a manga - O que é essa marca?
---Não é nada.
   Te olhei nos olhos e você olhava minha marca vermelha com um formato de ameba. Não gostava muito dela, mas era minha. Depois dali você começou a querer desvendar minhas marcas até que despertasse um desejo recíproco e eu pudesse ver as suas também. Você foi duro demais comigo, às vezes era rígido, não queria me contar de jeito nenhum, não se abria de jeito nenhum. Mas eu queria tanto... você.
    Mas ali naquela casinha a gente montava um mundo de marcas só nosso. Eu pegava algumas de suas marcas para mim e vice-versa. A gente se transformava, eu te mudava. Você queria beijar cada marca, queria cuidar de cada cicatriz. Às vezes eu chorava e você limpava. Você sempre foi o garoto que roubava corações e dessa vez você quis me dar o seu para que o meu não ficasse tão sozinho.
   Você queria que a sua casa fosse meu peito para que você pudesse construir um jardim onde meu sorriso fosse a porta de entrada para o seu. Você queria cuidar do telhado da nossa casinha para que de noite não chovesse na gente e eu pudesse dormir bem o bastante para te abraçar e te acolher.
   Você queria fechar as janelas para que meu cheiro ficasse na coberta ainda de manhã quando acordasse e tivesse me perdido pela cama.
   Você queria que eu te mantivesse acordado até a madrugada para ter a certeza de te desejar até o dia seguinte.
    Porque a casinha era tão nossa, e a gente era tão bom, você não podia deixar desmoronar. Não podia. Eu merecia. Você merecia. A gente. E para fazer tudo isso então, você só tinha uma saída.
     A mudança.
     E então, você passou uma semana do lado de fora plantando alguma coisa que eu não fazia ideia do que era. Às vezes eu achava que você estava se arrumando para ir embora, parecia cansado, você não subia mais.
    Você mexia na terra, regava e esperava. Em alguns dias eu via que nascia uma plantinha dali e foi quando eu mais tive medo de você me largar com ela ali. Mas você fez o contrário, você subiu. Foi quando sentiu essa necessidade tão grande de fazer diferente, foi quando mudou que descobriu o que era amor.
   Você mudou seu olhar sobre tudo para que meus olhos encontrassem os seus. Você mudou sua fala, sua voz para que eu pudesse deitar meus ouvidos e só querer te ouvir. Você se tornou carinhoso para que eu pudesse correr para os seus braços. Você comprou lápis e papel para que eu te escrevesse e você me desenhasse. Você trouxe coberta, e primeiros socorros. É que na verdade, boa parte do que estava construído, eu é quem tinha realizado e te dado, meu corpo, minha alma, minhas marcas e a casinha já estavam prontas para te receber, e você sabia que o toque final era seu, era entrar e beijar todos os dias, as seis marcas (pelo que você contou) e uma cicatriz que eu tinha no corpo. Era renovar a certeza de que nossa casinha era cada dia mais nossa. Era me dar um beijo de bom dia para eu saber que já tinha feito o café com o seu gostinho na boca. Era ficar doente e vir correndo assoar o nariz nojento na minha blusa, implorando para ser mimado. Eca. E eu?! Eu descobri o que era amor quando tive a certeza de que podia amar marcas tão diferentes das minhas, e de que podia construir uma casinha gostosa um pouco torta, mas que fizesse você se sentir confiante, leve e cuidado o suficiente para poder vir e ajeitar com toda sua engenharia de amar. Era descer todos os dias para ver o que a plantinha tinha a nos oferecer e a gente a ela. 
----Qual planta é essa?
----É surpresa. Mas calma, é sua.
A plantinha foi crescendo e se tornando árvore, cresciam flores rosas lindas, eu sabia qual era, mas não lembrava, que droga! Era tão linda, e ele tinha feito para mim. Eu não acredito que ele havia plantado uma árvore e de certa forma aquilo crescia dentro de mim dia após dia, me fazia brilhar por dentro. Até um dia em que descemos e eu vi uma coisinha pendurada na árvore redonda, avermelhada para o roxo.
Era uma cerejeira.
---Você é doce sem ser enjoativa, linda, pequena, gostosa, sensual e companheira. Pacote completo. – ele disse, apesar de eu nunca ter sido tão segura quanto a isso.

   E agora, toda vez que ele tem que ir por alguma razão, as cerejas brotam para que eu não fique só, e me lembre de comê-las ao lado de minhas escritas manchando e dando o toque final com a cor que ele me floresceu. - Luísa Monte Real 

Te Rotinamar


    A verdade é que eu te chamaria fácil de "amor" em meio a um sorriso e risada boba, revirando os olhos dizendo que você tá com o hálito de cerveja, e você faz careta dizendo que sou chata e não sabe como eu não gosto dessa coisa tão sagrada. E aí depois a gente parte para outra discussão onde eu tento entender o porquê de você e o mundo acharem que a palavra "top" não é top. E você iria rir achando que eu sou estranha, enquanto eu te abraçava e sentia em meu ouvido sua risada ecoar por dentro do seu corpo e sentiria seu calor ao me abraçar de volta.
   É que eu facilmente me imagino com você em um domingo frio, em um final de tarde de tédio, na sua sala de estar, terminando de ver algum filme que a gente nem gostou e ficamos em silêncio olhando um para a cara do outro esperando a noite chegar e eu ter que ir embora, deixando sua casa vazia numa sensação de como se a tarde tivesse sido tão mais legal assim comigo. A verdade é que eu consigo me imaginar te olhando com os olhos brilhando como se você me despertasse uma luz de alegria boba que vem de dentro para fora. E eu fitaria meus olhos em sua boca e depois olharia por dentro dos teus olhos implorando para que você adentrasse nos meus. Enquanto se aproxima para beijar minha boca que você acha ela tão bonita, desenhadinha, em forma de coração onde na ponta ela tem uma falha que a torna única, que te desperta mais ainda o desejo de ser só sua. É que eu não sei se você é perfeccionista. Se for, essa seria a falha perfeita em meus lábios, e se não for, os lábios seriam perfeitos pela falha. E aí, eu viraria o rosto para você beijar minha bochecha e sentir meu cheiro que te faz me querer mais apertada em teus braços. 
    É que eu consigo imaginar a gente discutindo quais sabores de sorvete são os melhores e você me achando um E.T. por dizer que eu nem sou tão fã de sorvete assim, e eu te achando ridículo por ver tanta graça assim. É que eu consigo imaginar essa mistura de uma fantasia quase sem graça de tão clichê, com uma chatice viciante de tão gostosa. É que eu consigo imaginar a gente caindo na rotina de um amor sem graça e comum, mas que dá sentido e euforia. A verdade é que eu consigo imaginar você fazendo piada de como eu durmo na posição de uma múmia dando a impressão de que morri, mas o quanto na verdade adora acordar antes para ficar me analisando naquela cena engraçada que faz eu parecer tão linda em teus olhos. Depois em uma vontade de me esmagar, você deita a cabeça em meu ombro encostando o nariz no meu pescoço e sentindo meu cabelo em seu rosto, me abraça com pernas e braços dando um sorrisinho que é quase um suspiro da alma. A verdade é que eu consigo imaginar eu fingindo que dormi nos teus braços, só pra você ajeitar meu cabelo para trás da orelha e beijar minha testa. E aí quando ouço sua respiração mais forte sei que dormiu e coloco-me mais perto para ouvi-la melhor enquanto desenho devagarinho seus braços, seus ombros e seu tórax com a ponta dos dedos. Depois brinco com a sua barba bem devagar para não te acordar, e penso que nunca fui muito de gostar de barbas, e que elas pinicam, mas que a sua cai tão bem no seu rosto. Aquela barba meio ruiva, meio castanha, que não sei como virou moda do nada se genética não se pinta. E penso que não interessa com ou sem barba, eu iria achar a coisa mais gracinha para se refletir antes de dormir. Você.    A verdade é que eu ainda não sinto nada dessas coisas e nem sei se sentiria, mas consigo imaginar e mergulhar nisso como se realmente tivesse vivenciado ou quisesse vivenciar com você. Talvez você me ache louca, mas desenhei em minhas memórias toda uma rotina do nosso amor e já não sei o que é meu e o que é do (a)mar que inventei de nadar com você. Sem saber se quero querer, eu imagino querer te rotinamar. - Luísa Monte Real

Espontânea


 
Ela nunca gostou de nada que a prendesse. Desde pequena sempre nervosinha, teimosa, com fome de independência e de querer ser grande pra ter liberdade... Se é que algum dia se conquista a tal. Ela nunca gostou de obrigações, se é pra fazer que faça com vontade, se não nem venha. Quanto mais natural, espontâneo e sincero for, melhor. Ela não gosta de enrolação. Ela sempre gostou de cartas na mesa e transparência no olhar. Ela gosta da empatia pra tentar ser justa e acabar entendendo um pouco mais sobre si mesma. Ela não cobra encontrar nos outros aquilo que ela é, se for pra ser, que ela seja pronto acabou. Muito menos aquilo que ela não é. Ela sempre gostou de ser a protagonista ou a antagonista da sua própria história, de levar a responsabilidade de ela mesma ter o papel de ser e não ser o que bem entender, ter a responsabilidade de acertar e errar. Ela não espera nada dos outros nem dela mesma, porque esperar é querer parar, é querer estabilizar, é querer controlar. E ai ai ai, controle ela não tem. Incerta ela é. Pensar e agir ela nunca para. Não necessariamente nessa ordem, até porque Espontânea é seu nome do meio. Ela procura estar bem para refletir o bem. Ela não gosta de brigas, prefere conversas. Ela não gosta de estresse e por isso vê tudo pelo lado positivo, afinal pra ela tudo é questão de ponto de vista. Ela não gosta de rotina e de planos, mapa então, nem se fala... Ela não gosta que coloquem palavras na sua boca. Ela gosta de ser única e singular como qualquer outra pessoa. Ela não é perfeita e por isso ama mudanças. Ela tem medo de ser julgada, mas aprendeu que querer ser o que todos querem é o mesmo que não ser nada. Ela descobriu que ela faz tudo por ela e não pra provar alguma coisa para alguém, quem viu, viu, quem não viu, quem sabe algum dia veja. Ela se acha engraçada e é a pessoa que mais ri de si mesma. Ela nem sempre gosta do que vê no espelho, mas na maioria das vezes sim. Ela gosta dos cachinhos dela e do seus olhos terem tons diferentes.  Ela não se arrepende de nada, pois o passado não volta e todo erro tem algum conserto. Ela aprendeu a perdoar, não por pena, mas para se dar a paz de que precisa. Ela acredita que respeito é tudo, respeitar o tempo, respeitar o lugar, respeitar o outro, respeitar a si e suas vontades. Ela quer que você dê a atenção de que ela precisa, mas também se não quiser ela prefere que não dê, porque ela também não suporta fazer as coisas sem vontade. Ela gosta de correr atrás daquilo que deseja e não perde oportunidades por orgulho, mas também sabe a diferença entre persistência e insistência. Ela não gosta de hipocrisia, contradições e mentiras, mas entende se você precisar delas para tentar se encontrar. Ela sabe que no final é isso que todos buscam, mesmo que alguns ainda se escondam no meio do medo de não ser o que esperavam. Ela sabe que todos querem uma segunda chance, todos querem ser melhores, todos querem um ouvido ou dois pra ser compreendidos ou pelo menos aceitos. Ela sabe que todos querem se desprender dos medos e serem espontâneos, serem livres, serem eles mesmos. Ela sabe que é o que todos querem, e por isso ela leva o papel de dar o que ela e todos gostariam de receber. E é por isso que ela não vai pedir pra você ficar. Ela vai te dar a liberdade de ser e fazer o que você bem decidir, sem rancor, sem pressão e com muita compreensão. Porque ela entende que todo mundo tem o direito de ser o que quiser e que ninguém deve nada a ela além de ela mesma, afinal a vida dela é só dela, a sua vida é só sua. E assim, ela vai te dar a chance de ser o que ela é, espontânea. -Luísa Monte Real

Ela

 
 
     Uma mãe. Uma esposa. Uma tia. Uma prima. Uma sobrinha. Uma irmã. Uma filha. Uma mulher. Tudo em uma só. Carrega o peso de mil personagens, mil histórias, erros, dores, acertos, alegrias, perdas e ganhos em um só coração. E que coração... Esse coração não é de pedra não, mas é forte como uma. Esse coração não é mole não, mas é aconchegante como pluma. É um coração paradoxal, mas que funciona. É o coração dela e sem posse algum entrega nas mãos do mundo. Ele pode até ter algumas cicatrizes e manchas, mas pra mim é o que o deixa mais bonito. É o que dá a sua singularidade, é o que faz com que em meio ao mundo em que foi entregue todos saibam "é dela". Só ela sabe como foi difícil torná-lo assim. Só ela sabe quantas vezes ele quis desistir. Só ela sabe como ele foi teimoso e preguiçoso nas lutas. Mas ela nunca o abandonou, ela nunca desacreditou, ela sabia que haveria um retorno de todos os sacrifícios que passou e ainda passa para permacê-lo assim como uma porta de boas vindas, um lugar gostoso, calmo, leve e com muitas energias positivas circulando por ele. Ela sabia que assim ela poderia se tornar a mulher de hoje. Ela sabia que assim todas as suas cicatrizes seriam sempre fechadas, sem jorrar sangue em si mesmo e nos outros. Ela é assim, forte e delicada. Porque a fortaleza está na abertura das gentilezas, e a fraqueza na barreira das grosserias. E hoje, ela se olha no espelho e o reflexo é um brilho simples, um brilho que não ofusca os outros, mas ilumina. Não há quem não se inspire nela, não há quem não a admire, não há quem não queira receber um pouquinho do seu coração. E ela é assim, não dá nem pra sentir inveja, traz só a vontade de ficar adorando, de querer receber sua luz e de um dia quem sabe ter uma singularidade, não igual a dela, mas que seja capaz de amar como ela. - Luísa Monte Real

Foto: Beth Romano

Amor sem padrões

     E que tudo seja rosa vermelha e pimenta picante. Que tudo se transforme em amor com sentidos e intensidades diferentes, mas sem medida de valores. Amor é amor. Sem preços e sem explicações. Que se quebre a ideia de que só casais tem romantismo. Que irmãos e irmãs se declarem. Que vizinhos façam surpresa. Que pais recebam flores de seus filhos. Que avós e netos façam poemas. Que primos se mandem cartas de declaração. Que amigos briguem por questões da relação e se desculpem com chocolates. Que tios e sobrinhos vejam filme com pipoca no cinema. Que eu possa morrer de saudade por alguém sem que seja um namorado em um intercâmbio. Que eu possa achar o melhor beijo do mundo em uma rua qualquer sem que eu precise casar. Que eu possa amar intensa, bela e romanticamente meu melhor amigo sem que goste dele como meu namorado. Que eu possa abraçar minha irmã e me sentir no melhor abraço do mundo sem que ela seja meu noivo. Que meu maior companheiro seja meu cachorro. Que eu possa me apaixonar por todos que admiro e amo, porque pra mim paixão não significa tesão e não tem só um tipo. Que o meu sorriso preferido seja o da minha mãe. Que o meu maior riso seja do meu pai. Que eu possa amar todos como nunca amei ninguém. Mas que eu ache um mix de todo esse amor e paixão  acompanhados de um desejo carnal em uma pessoa que vou levar para casa, ter um cachorro, uma tartaruga e talvez um casal de filhos. - Luísa Monte Real

Das simples coisas

  Eram mais ou menos onze horas da noite. Eu estava na famosa calçada de Ipanema, esperando meu ônibus passar para voltar para casa, onde minhas irmãs me esperavam dormindo, meus pais acordados e minha cama quentinha. Estava chovendo e de todos os dias, o único em que chovia era o único o qual eu esquecera o guarda-chuva. Várias pessoas estavam no ponto, cada qual consigo e seus respectivos guarda-chuvas. Cada chuva um segundo. E logo, eu estava molhada de minutos. Meus óculos não mais resolviam minha miopia. Ah! Não contente, havia esquecido meu casaco também. Os segundos caiam gelados enquanto o ônibus certo não chegava. De repente, vejo um homem com seu guarda-chuvinha preto, o menor que encontrei ali. Ele deveria ter seus quarenta anos, magro e baixo. Dizia alto e sozinho:
   ----Viado é você! - logo pensei comigo: " esse homem é maluco? Tá falando sozinho? " - Viado a puta que pariu! - e então, meu pensamento foi mais a fundo. Alguém nesse mundo cheio de preconceitos, provavelmente, o tinha insultado naquela noite chuvosa. 
    Até que vi que ele me viu e se assustou, desviei o olhar. Então, ele veio até mim e sorriu um sorriso de lavar a alma, me surpreendendo, colocando-me debaixo de seu guarda-segundos fazendo os segundos pararem, ou melhor, fazendo-me parar de senti-los, e dizia: 
   ----O que você faz aqui nessa chuva? Tão magrinha...
   ----Aí, muito obrigada! - eu agradeci sorrindo - Esqueci meu guarda-chuva. 
   ----E ninguém se ofereceu?! - o homem disse olhando a sua volta - Povo mal educado!
   Então, meu ônibus parava e eu tinha que ir. 
   ----Para onde você está indo? 
   ---- Barra. - eu respondia andando e ele atrás para eu não me molhar mais. 
   ----Ah eu também, mas não pego esse não. 
   ----Ah sim, muito obrigada novamente.
  E ele me sorriu. Fiquei no máximo dez gotas debaixo de seu guarda-segundos. Não me  deixou menos molhada, de fato. Mas seu ato simples somou-me muito mais. Aquela pessoa que normalmente é excluída da sociedade por sua opção sexual, que com toda raiva e revolta que poderia estar naquele momento, preferiu engolir, sorrir e me ajudar com seu mini-guarda-chuva em meio a vários que nem me notaram, seja por qual razão. Um gesto simples, um gesto bobo, que não custava nada, mas que me significou muito. Fazer o bem sem esperar nada em troca. Algumas pessoas veriam como obrigação, mas eu vi como amor, generosidade. Porque eu sou assim mesmo, sou boba mesmo, talvez romântica. Porque eu sou assim mesmo, absorvo lições do mais despercebido ocorrido. Porque eu sou assim mesmo, encantam-me as mais simples coisas. Porque eu sou assim mesmo, sou amor, sou a rosa toda, sou Sol e Lua, sou seca e chuva. Porque eu sou assim, sou todos os momentos que me passam e deixam de passar. Sou, só isso mesmo.