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O avesso da escrita: uma ética do indizível

 



A música cantada por Maria Bethânia “O que eu não conheço” (VERCILLO, J.; VELLOSO, J., 2021) traz um certo “dar-me conta do avesso que mora em mim”. O bordado é isso que se trança por meio de buracos, “tento situar o escrito - e ainda vou avançar nisso - como essa borda do Real, situá-lo sobre essa borda” (LACAN, 1973-1974/2018, P.194). Há uma escrita que inscreve o Real, na medida em que se situa e enlaça algo de um gozo a mais, que toca algo de indizível. É o que me interessa enquanto escritora e psicanalista marcada pelo nome Real (não pelo simples nome, mas por tomá-lo enquanto tal). Escrever, para mim, é tecer. É fazer sentidos e desfazê-los, comparado ao que aponta Lacan (1973-1974/2018, p.170) sobre o saber, é efeito de um inventar e construir, não existe anteriormente, o supondo: o inconsciente poderia ser totalmente distinto de uma suposição, porque o saber - se é verdade o que disse na vez passada - não está em absoluto forçado a supô-lo: é um saber em vias de construção” 

 O importante do bordado é o avesso, diz a música, pois é de fato onde as coisas acontecem. O inconsciente enquanto isso que só se tem notícias - quando escutado -, mas que é estruturado por toda uma trama, que às vezes se carrega sem saber, sem perceber. “O mais importante em mim é o que eu não conheço. O que de mim aparece” (VERCILLO, J.; VELLOSO, J., 2021), isso que também não-sou, me é. E não que se deva finalmente conhecer, não, mas que se trata de sustentar esse ponto impossível. Advertir-se e experimentar que o amor é sempre um reencontro com um desencontro, pois é onde me falta alguma palavra, onde me desconcerto e desconheço, que eu não pareço eu, que não sou o que pensei, é nesse ponto que abro espaço para refazer, para reescrever e para criar com algum outro, a matéria prima do amor. 

Lacan aponta uma dimensão ética da psicanálise em relação à arte, eu apontaria também para uma ética do indizível, onde toca o inexpressivo e o sustenta. Ele diz que Platão nos fez notar que é até preferível o poeta não saber o que faz, e que para os analistas “diante disso, na verdade, não resta senão abaixar a cabeça” (LACAN, 1973-1974/2018, p.192). Afirma que Freud sempre descartou a interpretação da arte, e de que é uma noção delirante o que chamam de psicanálise da arte, esta é descartável. Se há uma homologia entre psicanálise e arte, é a de que os analistas aprendam com ela e alcancem seus resultados para uma outra coisa, e de que a própria psicanálise se coloque como “esse terceiro que ainda não está classificado, essa alguma coisa que se apoia na ciência, por um lado e, por outro, toma a arte como modelo. E iria ainda um pouco mais longe: que não se pode fazê-lo senão na espera de ter que se dar ao final por vencido” (LACAN, 1973-1974/2018, P.192). Ali onde há um certo não sei do poeta, esse dar-se por vencido, é o que possibilita que a análise possa ser uma prática, “pode haver algo novo e que consiste em certa redistribuição de letras” (LACAN, 1973-1974/2018, P.190). 

“Então, se esse saber deve ser inventado para que haja saber, talvez seja para isso que possa servir o discurso psicanalítico” (LACAN, 1973-1974/2018, p.168), o amor é esse criar-se, inventar-se e ele aponta para um saber, ou melhor, uma verdade. “Descubro novos limites, eu perco o endereço”, o encontro com alguém é assim, por vezes bagunça e não sabemos por onde caminhar, pois um encontro que proporciona um certo perder o endereço, possibilita que eu faça novos caminhos. Esses caminhos que são possibilitados também na transferência, que nada mais é do que o amor, o modo que nos relacionamos é repetido na cena do DivãLacan no seminário 20 (1972 - 1973/2008) aponta que na clínica não se faz outra coisa senão falar de amor. No seminário 21, Lacan afirma: “a transferência é a descoberta: verdade do amor”, e que isto é uma revelação do inconsciente enquanto saber. O testemunho e a validação do inconsciente enquanto um saber é o que permite emergir a verdade do amor.  

O importante do bordado é o avesso, como diria o canto de Bethânia. O amor é feito trilhando esse caminho, o caminho da revelação de um certo gozo, daquilo que é expelido, Lacan (1973-1974/2018, p.81) aponta: ao Simbólico lhe dou o que se nos revela através de seu emprego na palavra, e especificamente na palavra do amor, que é suportar o que em efeito toda a análise nos faz sentir: suportar o gozo”. O amor é a linha que  tece e amarra, e por isso mesmo ele denúncia o que é que ele borda. O amor se dá finalmente ao tocar esse inexpressivo que aponta o gozo, ao resto que é o avesso da coisa bordada, é quase estranho, é quase feio e aversivo. É visceral. É o Real que não cessa de não se inscrever, e por isso mesmo se escreve parcialmente, por bordas, há sempre algo que sobra. Por isso, a escrita pode ser feita de sobras, a escrita é uma certa morte no que faz suportar e faz barragem desse gozo, mas ela também pode ir além, e ser litoral, catando os ossos (conchas) disso que morreu. Em escrever com o amor, e ao mesmo tempo subvertê-lo tocando a Coisa, o indizível, nem tudo o amor pode amarrar. Um gozo que é para além, tendendo ao infinito e ao para sempre nunca dito todo. Amarra-se um gozo na escrita, esse simbólico, e a partir disso mesmo que pode-se ir além, ao mais de gozar.

Esse amor que se apresenta na análise enquanto uma verdade, isso que se expele da transferência, Lacan coloca como uma coisa: 

“E nunca se soube bem fazê-la voltar a entrar, salvo sob a forma do mal-entendido, da coisa imprevista, da coisa com a qual não se sabe o que fazer, salvo dizer que era preciso reduzi-la, inclusive liquidá-la. (...) que da experiência analítica, a transferência é o que ela expulsa, o que ela não pode suportar senão padecendo, por sua causa, de fortes dores de estômago.  

Se o amor passa por esse estreito desfiladeiro de que é a causa, e com ele revela o caráter de sua verdadeira natureza (...) Com o amor pagamos, oferecemos um óbolo, tentamos por todos os meios permitir que se afaste, que se dê por satisfeito” (LACAN, 1973-1974/2018, P.179) 

 Esse estreito desfiladeiro se faz no bordado, no rendado, em uma travessia na qual tentei trançar a música de Bethânia e Lacan. Aqui também, por meio de minha escrita de poeta e psicanalista tento fazer o amor. Não sei o que digo ao dizer, mal compreendo, é quase nublado para mim o que escrevo, e como apontado anteriormente, é melhor mesmo que eu não saiba, justamente para apanhar algo disso que é minha própria invenção. Nem mesmo sei se me equivoco, me confundo em todos esses conceitos difíceis – e prefiro mesmo quando tropeço-, mas realizo algo de uma renda minha, com meus afetos, por agora. E sempre terei o que cair dessa escrita, para reescrevê-la, os restos dos meus panos não tecidos. E ao final da música, “O rendado do tempo, como me foi passado o ensinamento” (VERCILLO, J.; VELLOSO, J., 2021), tudo isso não é sem o tempo, e ao mesmo tempo tão atemporal. Os mesmos pontos circulam a todo instante, um ensinamento passado (transmitido e transferido) ainda se faz presente. A repetição (que se apresenta também na transferência) não é um mero “murro em ponta de faca”, é o segredo do ponto” (VERCILLO, J.; VELLOSO, J., 2021) que vira enredo. 

 

 

 

Referências bibliográficas:  

LACAN, J. (19731974). Os não-tolos erram / Os nomes do pai: seminário entre 1973-1974. Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2018. 

_________. (1972-1973). O semináriolivro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008. 

VERCILLO, J.; VELLOSO, J. O Que Eu Não Conheço. In: Bethânia, Maria. Disponível em: https://www.letras.mus.br/maria-bethania/1563907/ . Acesso em: 14 de setembro 2021.