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Cantora Céu em Corpocontinente - A dança angustiante e odiante do amor

 




Vou passear em seu delírio

Vou te relembrar como se faz uma saudade

Saudade

Palavra inexistente

Um dialeto fora do nosso continente

Continente

Se acaso você passear

Por outras terras

Tomar um outro ar

Talvez seja bom

Mas quando escutar aquele som

Vai lembrar do que chamamos de nos tornarmos um

E a saudade só se faz

Quando a soma de dois

Resulta em um sentido só pra nós


Céu - Corpocontinente



    Essa música me causou algumas reflexões sobre o amor. Me trouxe um certo incômodo, mas ao mesmo tempo uma certa beleza. Me trouxe uma contradição, que é própria do amor. Me fez pensar na diferenciação que Lacan faz do amor imaginário e do amor simbólico (ainda que ambos se entrelacem, esse é o paradoxal e o ambíguo que senti na música: um se faz com o outro)

“Aprendam a distinguir agora o amor, como paixão imaginária, do dom ativo que constitui no plano simbólico. O amor, o amor daquele que deseja ser amado, é essencialmente uma tentativa dele capturar o outro em si mesmo, em si mesmo como objeto.

(…) O desejo de ser amado é o desejo de que o objeto amante seja tomado como tal, enviscado, submetido na particularidade absoluta de si mesmo como objeto” (Sem 1, p.315, Lacan)


    Senti certo ódio nessa saudade, trazendo essa paixão, amor imaginário. Essa palavra saudade sendo estrangeira, em que os dois compartilham enquanto semelhança. Essa palavra que detém um sentido só para os dois, que os fazem diferente dos outros, separando e odiando os outros, podemos eu e você sermos um. Nos amamos iguais, odiando os outros diferentes.

    Bem como, a saudade havendo um certo poder de vingança por esse outro que está em outras terras, longe, separado. “passear em seu delírio” (o ódio quer o seu desvio, o seu delírio p. 316) me veio a imagem de uma cobra passeando devagar, seduzindo, envenenando o outro, fazendo-se presente em lembrança. Um certo desejo de destruir esse outro. Um encantamento de sereia que é mortal “aquele som”. “a estrutura mais fundamental do ser humano no plano imaginário - destruir aquele que é a sede da alienação” (Sem1, p.199, Lacan)



    Ao mesmo tempo, me fez pensar no ódio em sua função contrária. Como uma separação entre os dois, que cria o particular de amar, em que passear por outras línguas possa ser exatamente o que permite se reencontrar e recriar, refazer: um sentido (possa existir saudade), que é 1, mas pode ser 2 passando assim para a palavra. “Como se faz uma saudade”, o verbo fazer, o esforço de palavrear. Nomear o sentimento, é então de fato senti-lo. Poder suportar o ódio para além da destruição: nomeando. O sentimento puro e sem nome, solto, é refém à angústia. O amor só pode ser amor, ao ser falado, e inevitavelmente após certa angústia, que é anterior e que possibilita a quebra de certa equivalência imaginária.


“o sujeito está no mundo do símbolo, quer dizer, num mundo de outros que falam. É por isso que seu desejo é suscetível da mediação do reconhecimento.

(...)

cada vez que, no fenômeno do outro, algo aparece que permite de novo ao sujeito re-projetar, re-completar, nutrir, como diz Freud em algum lugar, a imagem do eu-ideal, cada vez que o sujeito é cativado por um dos seus semelhantes, bem, o desejo volta no sujeito. Mas volta verbalizado” (p.198)

 


    Pensei na questão continente, de ser estrangeiro ao outro, do corpo haver suas próprias fronteiras impossibilitando fazer um, ainda que se deseje. A fronteira, as diferenças, a linguagem, são esse terceiro que possibilita haver 2. Antes disso, de fato 2 são um. Por isso, logo após ela falar de tornar-se um, ela muda o discurso e aponta a palavra saudade, que é o efeito do que fazem dois. A soma de dois dá um, mas há uma quebra (há algo no meio), porque dá um... sentido, e não uma mesma pessoa, uma simbiose. Sendo assim, "a saudade só se faz quando a soma de dois resulta em um sentido só pra nós", a saudade só é feita desse um sentido, o sentido instaura uma unificação (sendo parte do imaginário), mas também um desencontro, ao inserir a palavra. 

    Há algo que se encontra pelas palavras, se faz não somente eu em você, ou você em mim, mas uma produção de nós. Algo que se cria (um sentido), mas não se gruda. Há algo que não cola (no sentido brasileiro de dizer que algo não faz sentido, não cabe), isso não cola. 



    Transforma-se o ódio e o desejo de destruição uma separação necessária para tecer amor, um amor verbalizado, ainda que em uma palavra inexistente (em outros continentes, em outros corpos, em outros amores). Poder desiludir-se/desencantar-se e caminhar para a palavra, que é sempre uma certa mortificação (porque nunca se diz tudo, e perde algUM sentido, sempre se diz diferente do que se pensou, demarca uma impossibilidade), que delimita e instaura o mal-entendido de um continente ao outro, um outro que também fala e não é eco. Que esse amor também seja fora ou além do sentido, do que existe. Do entre que faz corpocontinente (que está escrito junto, mas se é continente há fronteiras).


“O amor, não mais como paixão, mas como dom ativo, visa sempre, para além da cativação imaginária, o ser do sujeito amado, a sua particularidade. É por isso que pode aceitar dele até muito longe as fraquezas e os rodeios, pode mesmo admitir os erros, mas há um ponto em que pára, um ponto que só se situa a partir do ser - quando o ser amado vai muito longe na traição de si mesmo e persevera na tapeação de si, o amor não segue mais” (Sem 1, p.316, Lacan)


Por fim, cabe aqui minha angústia de não tentar decifrar, um exercício de não “psicanalisar” a música (apesar de tentar sim, não nego, e de esse ser meu sintoma). Mas tento, antes de tudo, colocar questões (minhas), pontos de encontro que percebo entre psicanálise e a obra, que como o corpocontinente, tem suas fronteiras. Colocar em palavras e teorias, o que essa música me afetou, me fez pensar e não-pensar, me faz elaborar da própria psicanálise, e me faz dançar a dança angustiante e odiante do amor.




Referência: 

artigo “Do amor imaginário ao amor simbólico: um percurso da transferência” http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-73952017000100003


Seminário 1, 1954 Lacan